quarta-feira, 30 de março de 2011

CRIACIONISMO VERSUS EVOLUCIONISMO: UM PROBLEMA ARTIFICIAL

Parece ser que algum grupo fundamentalista norte-americano está tentando impor a teoria criacionista dentro do sistema escolar, contra a perspectiva científica da teoria das espécies de Darwin. Mais uma vez aparece aquele antigo problema que é, na minha opinião, absolutamente artificial, da razão contra a fé, ou da Bíblia contra a ciência. Esta situação é mais própria de estreitas interpretações bíblicas e de autoritários hábitos eclesiásticos ultrapassados, do que deste século XXI. Vejamos:
A)        Resumindo os dados bíblicos
1.         A experiência histórica de Deus é, originalmente, a experiência de um Deus único e libertador que, por meio de Moisés, tirou os escravos do Egito, constituiu um povo com o qual fez sua Aliança e a quem deu uma terra. É uma experiência histórica que se data nos tempos do faraó Ramsés II. Este Deus encontra sua expressão ancestral no Deus de Abraão, de Isaac ou de Jacó. Mas, a partir de Moisés e da experiência de libertação, Deus tem um nome YHWH, que significa “aquele que é” ou “que é”, no sentido daquele que vai com seu povo. A Aliança de amor e de fidelidade entre Deus e seu povo constitui a nação de Israel. Mesmo que a própria Bíblia não esconda as constantes infidelidades e quedas idolátricas do povo. Porém, apesar de tudo, a fé de Israel é constante, pois é uma recitação das “maravilhas operadas por Deus”, quem os tirou da escravidão do Egito e os conduziu para a “terra onde mana leite e mel”. Isto é o “creio em Deus” nacional israelita.
2.         A experiência de Deus como Deus-criador não é histórica, senão que é fruto da reflexão teológica daqueles pensadores bíblicos e que se plasma especialmente nos primeiros capítulos do livro do Gênesis. A reflexão vai desde o Deus libertador que, de fato, tirou a nação da escravidão, para o Deus criador e senhor do Universo.
3.         O contato com os povos e culturas circundantes propiciou para a primitiva reflexão teológica israelita o material mítico criacional necessário para, após ter dado forma própria segundo sua própria fé em Deus, tecer os dois relatos da criação que se encontram nos capítulos 1 e 2 do livro do Gênesis.
4.         O primeiro relato no capítulo primeiro é mais cósmico e nos traz a criação “dos céus e da terra” e de tudo quanto neles existe, de maneira detalhada e em sete dias. No sexto dia são criados o homem e a mulher, no sentido de humanidade, “à imagem” do próprio Deus. No sétimo dia Deus descansa. A criação em sete dias significa a perfeição do Universo e da terra. O especial amor de Deus para a humanidade se manifesta em que seja sua própria “imagem e semelhança”. O mandamento mosaico do descanso sabático é justificado pela atitude do próprio Deus que assim faz. E no bojo desta explicação criativa de todas as coisas há presente um processo de demitificação: nem o sol, nem a lua, nem as potências cósmicas, nem bicho nenhum... são deus! É uma resposta ao politeísmo dos povos vizinhos. Só Deus é Deus e Senhor de todas as coisas. Tudo é de Deus e depende dele e da humanidade “à sua imagem”. Quando o autor sagrado nos diz que Deus viu que tudo era “bom” e, conclusivamente, “muito bom”, está nos falando da bondade e da santidade de todas as coisas e da humanidade.
5.         A criação está pronta! Porém, no capítulo segundo, começa tudo de novo! E o autor (ou compilador) do livro do Gênesis coloca outra “criação”, mais antropológica. Agora Deus cria um Paraíso e, no centro dele, modela um boneco de barro ao qual dá seu sopro-hálito (=”ruah”=espírito) de vida. De uma costela do homem (“ish”) modela a mulher (“isha”) que é, para o homem “osso dos meus ossos e carne da minha carne”, isto é, igual ao homem. E a partir daqui surgem os questionamentos sobre a realidade do ser humano.
a)         Porque existe o sofrimento e a morte? Resposta: há algo de errado na origem, que se chama pecado, desobediência, afastamento de Deus, que implica na perda do Paraíso. O Paraíso perdido é o estado natural do ser humano. Mas por causa do misterioso pecado, os seres humanos têm que “ganhar o pão com o suor”, parir entre dores e, no fim, morrer. O pecado é a causa da morte. A “árvore da ciência do bem e do mal” é a expressão mítica do mistério moderno da liberdade. No fim, poderíamos dizer: o que pode nos tornar semelhantes a Deus, o mistério da liberdade, pode também nos fazer fugir dele, quando tomamos consciência de que estamos ‘nus”.
b)         A partir deste pecado “original”, pelo qual entrou a morte, os autores bíblicos continuam com outros pecados conseqüentes constatáveis:
- Porque os homens se matam entre si? Resposta: quando Caim mata Abel, quando o irmão mata o irmão...
- Porque a humanidade, como um todo, se esqueceu de Deus? Então sobreveio o dilúvio do qual escapou Noé, como uma nova criatura...
- Porque existe a confusão, a divisão, a incompreensão entre os seres humanos? O mito de Babel da a resposta, etc.
B) Porque se coloca o criacionismo versus o evolucionismo?
A Igreja antiga definiu a criação “ex nihilo”, isto é, a partir do nada. Esta foi uma resposta à visão da filosofia grega da criação ou do ordenamento do caos, por meio da figura do demiurgo. Figura que a Igreja antiga rejeitou por causa da possibilidade de identificar o demiurgo grego com o Logos criador de São João. A divindade grega do demiurgo tem uma queda ontológica com relação a Deus. Não assim o Logos de Deus, encarnado em Jesus de Nazaré, que é “Deus de Deus e Luz da Luz”.
Assim pois, estamos perante um enfoque de compreensão filosófica grega com a compreensão da teologia cristã.
É evidente que estas questões não têm nada a ver com Darwin e com a teoria da evolução das espécies. Querer trazer aquelas respostas da igreja, para estes questionamentos atuais, como mínimo, é um anacronismo.
Hoje conhecemos a teoria da primeira explosão ou “big bang” que está na origem do Universo. A pergunta que surge é: está aqui o ato criacional de Deus? Temos a pergunta, mas temo que nunca teremos a resposta. O mistério permanece também a partir da linguajem e da experiência científica.
C)        Uma perspectiva moderna da questão, a partir do Pe. Teilard de Chardin
Sabemos que a Igreja anglicana rasgou as vestes quando Darwin apresentou sua Teoria da Evolução das Espécies. A Igreja católica ficou apenas observando, pois a questão não era dela, mas dos ingleses. De todos modos, a interpretação literal e histórica da Bíblia nestas alturas do século XIX e começos do XX estava com os dias contados. As novas ciências humanas tinham seu próprio método e começavam a ser integradas na compreensão da Bíblia pelo que se chamou a exegese moderna.
O Pe. Teilard de Chardin, francés, jesuíta e paleontólogo, na primeira metade do século XX “batizou” a teoria darwiniana, quando apresentou sua fantástica visão da evolução da vida dentro do cosmos em termos teológicos. Livros inesquecíveis como “Le milieu divin” (O meio divino) ou “La Messe sur le monde” (A Missa sobre o mundo), entre outros, dão conta da profunda espiritualidade do padre. Alguns de seus livros foram publicados a título póstumo, pois a Igreja os achou avançados demais para o momento.
Para este, na árvore da vida, há vários ramos que surgem desde o tronco principal em cujas raízes surge a vida que vai se desenvolvendo diferentemente em seus ramos, como diferentes espécies, num processo constante de evolução. Desde o tronco há um desenvolvimento na rama dos primatas, onde surge a consciência e, com ela, o homem. A consciência não é um dado pronto, senão que responde também a um processo de evolução, ou de conscientização ou de crescimento da própria consciência. Este processo evolutivo é chamado de “hominização” A linguajem para “batizar” este processo de evolução é tomada do livro do Apocalipse. Tudo evolui desde o Cristo-Alfa ou princípio de todas as coisas, para o Cristo-Omega ou plenitude de todas as coisas.
Assim, pois, desde o surgimento da vida microscópica até a plenitude da vida na consciência do ser humano, há um processo de crescimento de vida, no qual são integradas todas as espécies vivas. No centro delas se encontra a espécie humana em devir, desde o Logos ou Palavra de Deus por quem todas as coisas foram feitas, até encontrarem sua realização e plenitude no próprio Deus.
Nesta história do crescimento de consciência ou processo de hominização, num momento determinado da história, acontece um homem, Jesus de Nazaré, a plenitude do processo hominizador, acontece Deus. E em linguajar paulino, poderíamos dizer que o “universo inteiro geme com dores de parto até a manifestação do dia de Cristo Jesus”, isto é, até que a humanidade realize sua plenitude.
Concluindo:
Fica clara a artificialidade da questão do criacionismo versus evolucionismo. E diria mais, seguindo a carta de São Pedro, de que nós, cristãos, temos que saber “dar razão de nossa esperança”. E em nossos dias, saber dar razão ao mundo da ciência. É a partir da fé no Deus que acontece em Jesus de Nazaré, que a plenitude de sentido, tanto para o cosmos quanto para o ser humano, se torna acontecimento salvífico.
Os antigos escritores do livro do Gênesis souberam fazer isso. Qualquer linguajem é, sempre e por definição, simbólica. A linguajem teológica atual deve, que nem o Pe. Teilard de Chardin, procurar discernir a teologia presente na simbologia lingüística de hoje. Discernir nos “sinais dos tempos”, já dizia Jesus.
Parece-me que já se passaram os tempos em que a fé se tornava uma imposição. Hoje a fé se entende como proposta de sentido para a realidade que está aí. Sentido que apenas a consciência humana é capaz de captar e de dar. Sentido que o homem de fé encontra em Jesus de Nazaré como paradigma de humanidade. Ou não. Quando o absurdo se impõe perante a impotência da fé, então a realidade e o ser humano nela, não passam de uma “paixão inútil”. Já vimos isso.
Por outro lado, é uma desgraça relegar a responsabilidade histórica da fé a um fideísmo fundamentalista que não é mais do que a expressão de sua própria impotência. Mas, sobre isto podemos falar outro dia.

(artigo publicado em www.natalpress.com aos 07/02/2005)

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