A civilização perde e retrocede toda vez que a violência consegue impregnar a cultura, qual tumor maligno
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo

Esses tristes casos somam-se à infindável lista de violências contra a pessoa em nossa cidade; e aumentam a conta já extensa de agressões contra moradores de rua. Em agosto de 2004, sete moradores de rua foram assassinados no centro da nossa Metrópole; depois de sete anos, aquele massacre ainda não foi elucidado e resolvido pela justiça.
Coisa parecida acontece com o caso dos seis moradores de rua exterminados no Jaçanã, em maio do ano passado, e com tantos outros fatos de violência contra esta parcela da população marginalizada e já tão sofrida. Será que desta vez os culpados vão ser identificados e chamados a prestar contas à justiça?
A impunidade acaba estimulando mais violência contra os moradores de rua, esquecidos das políticas de segurança pública, desinteressantes para a economia, socialmente invisíveis, talvez até sem documentos, um problema para a limpeza da cidade... Machucá-los, feri-los, por que não? Matá-los, qual é o problema? Sua morte nem desperta especial reação na opinião pública. Mataram mais dois moradores de rua, e daí?!
A Arquidiocese de São Paulo protesta contra esse descaso e manifesta sua solidariedade a todas as vítimas da violência, quaisquer que elas sejam. O Vicariato Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua tem a preocupação de oferecer a essa parcela da população em situação de risco a assistência humana, social e religiosa de que necessita; vários grupos cuidam da saúde e da alimentação, outros assumem sua defesa contra agressões e violências; alguns não hesitam em passar as noites ao relento, nos lugares em que essas pessoas dormem, para protegê-las.

Há a violência, geralmente aceita de forma resignada, das injustiças sociais e econômicas, que negam vida digna a milhões de pessoas; pobreza extrema e miséria absoluta ainda persistem, camufladas pelos dados ufanistas do crescimento econômico nacional; esta violência dói tanto mais, porque golpeia duramente os órfãos do progresso, gente de todas as idades, mas especialmente crianças, não lhes permitindo um pleno desenvolvimento físico, intelectual e social.
Sem esquecer os horrores da guerra, pensemos na violência do crime organizado, nutrida por enormes interesses econômicos vindos do contrabando, do tráfico de drogas e pessoas. Há a violência doméstica, na escola, nos ambientes de trabalho e no esporte... E ainda as violências “corriqueiras” de todo o dia, físicas, psicológicas e morais, que não ganham espaço na mídia. A violência avilta, machuca, amedronta, cerceia a liberdade, intoxica o convívio social, mata, entristece, envergonha!
Não bastasse o quadro assustador da violência, temos que constatar ainda a cínica e doentia espetacularização da mesma, como forma de garantir audiência, em certos meios de comunicação. Afinal, aonde queremos chegar? Se a violência é comparável a um tumor, admitamos que a cultura e a sociedade do nosso tempo estão gravemente enfermas, precisam fazer um exame crítico rigoroso dos fatos e submeter-se a sérias terapias...
As diversas formas de violência desafiam as Autoridades para uma ampla reflexão sobre seu significado político e para a promoção de medidas preventivas capazes de coibir e punir os atos violentos e de promover um convívio respeitoso e pacífico. Há uma justa preocupação pela promoção do progresso econômico e para que o bem estar chegue a todos. Mas, pergunto, onde estão as políticas de incentivo à formação humana, ética e cidadã? Cuidamos da economia e descuidamos das pessoas! Onde estão as iniciativas para um saneamento da cultura da violência e para a afirmação dos princípios básicos da dignidade humana e dos seus direitos mais elementares? Pode-se matar uma pessoa, morador de rua ou quem quer que seja, como se mataria uma barata?

Penso que caberia um pacto contra a violência, que começasse pela educação das crianças no lar e na escola e passasse por várias iniciativas comunitárias, como a campanha pelo desarmamento, as manifestações públicas de desaprovação dos fatos e espetáculos de violência e a educação para o diálogo, o respeito pela ética e pela dignidade humana.
Ninguém está livre da violência por habitar em condomínios fechados, vigiados, atrás de altas grades diante da casa e de cercas eletrificadas... Para não ser a próxima vítima, cada um deve tornar-se um educador para a paz e participante de um grande mutirão para acordar as consciências, empenhado na rejeição de toda forma de violência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário